(Texto criado inicialmente para nota do Facebook, e ampliado aqui)
Nasci no Brasil e minha língua materna é o português.
Óbvio?
Não pra todo mundo. E quase todos os dias eu tenho que explicar isso (às vezes cansa, mas não explico com má vontade não, porque é uma oportunidade de fazer o povo pensar).
Óbvio?
Não pra todo mundo. E quase todos os dias eu tenho que explicar isso (às vezes cansa, mas não explico com má vontade não, porque é uma oportunidade de fazer o povo pensar).
Minha língua é o português, não o “brasileiro”. Essa nomenclatura não existe. E há que se dar o nome certo às coisas. Falo português do Brasil, isso sim. Ou "português brasileiro" também tudo bem. Mas a palavra "português" tem que estar lá.
E tenho enorme orgulho da minha língua portuguesa. A de Saramago, a de Jorge Amado, a de Gullar, a de Mio Couto. A de Chico, a de Tom. A da voz de Bethânia. A da gigante Mariza, portuguesa e africana ao mesmo tempo. A dos funks cariocas. A do fado. A da bossa-nova. A dos sertanejos. Não concordo com a ideia de que “é tão diferente que quase já é outra língua”. Ser diferente, da forma que é, não faz dessas variantes línguas diversas. Essa postura empobrece, em vez de somar.
Entenderei eu um grupo de jovens do bairro da Baixa de Lisboa? Provavelmente não tudo, e, se eles se empenham, quase nada. Poderei conversar com adolescentes de Moçambique, de igual pra igual? Somente com grande esforço de comunicação. Mas isso siginifica que falamos outra língua? Certamente não. Utilizamos registros diferentes. Mas podemos, todos os citados, entendermos um texto do Jornal de Angola (http://jornaldeangola.sapo.ao/) se estamos realmente alfabetizados. Faltarão as referências culturais? Sem dúvida, mas isso falta também se leio um texto do Jorge Amado e poco sei sobre a Bahia. Mesmo sendo brasileiro, pode acontecer, e como acontece... E também me sentiria perdida na Zona Leste de São Paulo. E seria um peixe fora d'água em um baile funk da Mangueira, ou em uma festa de mauricinhos na Barra. Os grupos têm seus códigos, as idades, as profissões, os gêneros. Isso é sociolinguística. Isso não determina uma língua diferente. Afirmá-lo é ignorância. Pode vir a determiná-lo um dia? Talvez, mas são necessários muitos séculos e muitíssimos fatores outros. Atualmente, neste momento da língua portuguesa, falamos o mesmo idioma. Com variantes olímpicas, sim, mas o mesmo.
Dirão alguns: mas não entendemos muitas palavras ditas pelos portugueses. Ah, claro, você, brasileiro, lê Guimarães Rosa e entende tudo. Lê Machado e entende tudo. Lê Mario de Andrade e entende tudo. Verdade? Mentira! Léxico não é idioma. É uma parte dele. Quanto mais se lê, mas se entende, verdade? Sim, verdade. Então temos que ler mais os portugueses. E assistir mais cinema português. E ouvir mais música portuguesa. E não nos fecharmos em copas, como fazemos. Sim, o brasileiro rejeita muitas vezes o que vem de Portugal sem nem mesmo saber se é bom ou não. Não o faz com raiva. Simplesmente o faz. Ah, você não gosta? Tudo bem, tem direito. Mas pra não gostar tem que conhecer. Do lado de lá (que pra mim, agora, é de cá) fazem o mesmo? Fazem. Preconceitos mis. Mas nos conhecem mais que nós a eles. Veem as novelas brasileiras. Ouvem Marisa Monte e Chico, Caetano. Falta? Falta muito. Quase não leem os brasileiros. Desolei-me em Lisboa ao não encontrar quase nada da nossa literatura nas livrarias. Necessitamos urgentemente re-conhecernos nessa cultura lusófona (mas isso é outra história longa).
E o exemplo hispânico já é clássico. O que se fala em Cuba é “tão diferente” do que se fala na Argentina, que é “tão diferente” do que se fala na Colômbia, que é “tão diferente” do que se fala na Espanha.... e mesmo na Espanha, o que se fala em Madri é “tão diferente” do que se fala em Granada... E nem por isso deixa de ser a mesma deliciosa língua de Carpentier, Borges, García Márquez, Lope e Lorca, respectivamente. Claro que a unidade da língua espanhola é infinitamente maior do que a da portuguesa. Em grande medida por sua inteira unificação ortográfica. O nosso recentemente aprovado acordo é parco e mal feito. Não chega nem de longe ao que os hispânicos conseguiram, com muita luta, desde Andrés Bello. E que delícia é poder comprar as novidades hispano-americanas saidinhas do forno em qualquer boa livraria de Madri.
Não confundamos variante com língua, língua com registro, registro com socioleto, socioleto com idioleto, idioleto com gíria, gíria com variante, e por aí vai.Quem, em sã consciência, seria capaz de afirmar que um californiano ou um nova-iorquino não falam inglês? O critério, como sempre, mas que linguístico é econômico. Mas então, se o critério é econômico, em breve terão que dizer que nós, os brazucas, falamos português, e não os portugueses... ;-) (coisa com a qual tampouco concordo, obviamente).
Bethania Guerra de Lemos
UAM, novembro de 2010.